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Depois que o tratamento oncológico termina, já não existem tantos efeitos colaterais, o cabelo volta a crescer, o médico diz que a pessoa pode retomar a vida “normal”. Mas, depois de um câncer, nada mais será como antes. Passada toda a avalanche emocional, o olhar sobre a própria existência ganha um novo significado, as prioridades mudam, até porque o medo da recidiva (retorno da doença) se faz presente. Porém, essa sombra não deve impedir a realização de sonhos que até então eram adiados; a hora de ser feliz é agora.
Depois de receber o diagnóstico, a vida dá uma guinada, a rotina é atropelada e a agenda é tomada por exames, consultas, tratamentos, cirurgias. Não poderia ser diferente, já que o foco é automaticamente ajustado para a sobrevivência. Todo o ‘resto’ vira supérfluo. Mas, terminada a trajetória de enfrentamento do câncer, vem o pensamento: e agora? As atitudes são as mais diferentes. Há quem se sinta sozinho por não ter mais a frequência das idas ao hospital e do contato com a equipe médica; há pessoas que não veem a hora de ‘correr atrás do tempo perdido’ e fazer mil coisas ao mesmo tempo; e também quem ache que ganhou a chance de voltar ao jogo e que, talvez, precise fazer tudo diferente de como era antes.
Seja qual for o caminho escolhido, o fato é que o risco de a doença retornar fica à espreita, o que pode fazer com que os dias bons sejam intercalados com dias ruins. Mas, tudo bem, porque a vida também é assim: uma hora está tudo ótimo, na outra, nem tanto. Por isso é importante aproveitar a oportunidade que o câncer traz de ‘obrigar’ a pessoa a parar e prestar atenção à própria vida e dar um novo significado às suas escolhas. “Trabalhamos muito, perdemos tempo demais no trânsito, fazemos inúmeras atividades, várias delas no piloto automático. E, quando se é forçado a parar com tudo para cuidar de si mesmo e da saúde, percebe-se uma fragilidade que antes passava desapercebida justamente por conta da rotina atribulada. Daí ser tão comum rever valores e crenças, analisar desejos antes escondidos ou adiados e se o que se faz no dia a dia realmente tem sentido”, diz a psico-oncologista Flávia Sayegh.
“O mais interessante de ter um olhar pós-câncer, de enxergar com distanciamento tudo o que passei, é o quanto me libertei para várias coisas que eu costumava fazer, mas que tive de rever por estar física e emocionalmente debilitada e limitada. Para alguém como eu, que sempre foi autônoma e autossuficiente, pedir ajuda e delegar os cuidados com os filhos, a casa e o trabalho não foi nada fácil. No entanto, essa nova realidade acabou se tornando um grande aprendizado. Tanto que depois do câncer fiquei tão ansiosa para tentar recuperar os momentos perdidos que saí que nem louca fazendo várias coisas ao mesmo tempo. Agi impulsivamente muitas vezes, acumulando, por exemplo, duas pós-graduações no mesmo período. Essa loucura foi boa, porque graças a ela entendi que aquele não era o meu ritmo verdadeiro e que o autocuidado não é um desafio apenas durante o câncer, mas também depois dele ao longo de toda a nossa existência.”
Tania Tonezzer, 56 anos, teve câncer de mama há quinze anos e uma recidiva há doze. A experiência desses enfrentamentos e a forma como ela passou a encarar os desafios, além dos projetos direcionados ao bem-estar do paciente oncológico criados por ela, ajudaram muitas pessoas que estão na mesma jornada e fizeram com que ela valorizasse ainda mais a vida.
Novos ajustes
Dizem que uma das maiores ansiedades de quem passou pelo câncer é voltar à vida ‘normal’. Contudo, este novo capítulo precisa ir além de retornar à rotina habitual. Para descobrir o que se quer para si mesma – e não o que os outros desejam – é preciso ser honesta em relação ao que está sentindo e, para isso, contar inclusive com a ajuda do cuidador. E, isso não significa ficar preso ao passado. Pelo contrário. Toda ajuda será bem-vinda para decidir como aproveitar melhor o tempo livre das consultas médicas, dos tratamentos, da recuperação em casa. “Considerar voltar a trabalhar ou a estudar é um ótimo começo, e uma excelente forma de restaurar a noção de normalidade e controle que às vezes se perde durante o tratamento oncológico. Retomar um passatempo ou encontrar um novo hobby também é uma excelente pedida, como fazer aquela viagem sempre adiada ou aprender algo que foi deixado para depois”, diz a psico-oncologista Rachel Righini.
Segundo a especialista, nessa retomada da rotina é preciso reservar espaço para cuidar da própria saúde. O que inclui melhorar hábitos de vida, respeitar as horas de sono, seguir uma alimentação mais saudável, praticar atividade física, combater o estresse e fazer o que traz felicidade e dá a sensação de completude. Compartilhar as experiências também é de grande ajuda – para si mesma e para quem está na mesma luta. Os três depoimentos deste capítulo mostram a força e a coragem de guerreiras que transformaram obstáculos em oportunidades.
“Voltei do câncer melhorada e com a certeza de que nada acontece por acaso e que até as piores coisas são uma oportunidade de aprendizado. No meu caso, reforcei a ideia de que a gente tem de ser feliz e fazer o que gosta, o que deseja, sem se importar com a opinião dos outros. Até porque eles também têm seus medos e problemas, que podem ser diferentes dos nossos, mas estão lá, assombrando-os. E isso me levou à outra constatação: a de que o presente não tem esse nome por acaso.”
Joana Jeker dos Anjos é empreendedora social, ativista na causa do câncer, autora do livro O grande encontro e fundadora e presidente da Recomeçar – Associação de Mulheres Mastectomizadas de Brasília, que atua desde 2011 na construção de políticas públicas oncológicas.
“Esse tal ‘novo significado’ não tem a ver só com o câncer. Acho que é algo natural da vida, as pessoas se modificam a partir de suas experiências e da maturidade. Claro que com o câncer você acelera esse processo, já que é impossível não reavaliar suas escolhas ao se ver tão frágil e sabendo que a morte pode estar perto. Confesso que no início me apavorei, mas, ironicamente, foi a metástase que me levou à terapia e se transformou em um divisor de águas. Comecei a focar mais no presente e a não projetar tanto o futuro. Claro que faço planos, mas faço isso de forma leve. Ainda penso na morte, mas bem de vez em quando, até porque estou na nona recidiva. Por ter vivido tantas experiências, eu não elimino mais “o aqui e o agora”. Fato é que estou com um ânimo danado de vencer mais esta batalha.”
Leoni Margarida Simm, 63 anos, é socióloga e presidente voluntária da instituição AMUCC – Amor e União Contra o Câncer, de Santa Catarina.
Sem dúvida, há muito aprendizado durante todo o tratamento. Os relatos mostram que a maioria das pessoas conseguem ultrapassar seus medos e passam a utilizar toda a experiência, por mais dolorida que seja, como uma luta que vale a pena. Ao reunirmos profissionais e pacientes para compartilhar seus saberes e suas histórias nesta série de episódios, procuramos estimular o paciente oncológico a investir sempre em sua autoestima e em uma vida saudável, que vai além da ausência de doença. Como diz o filósofo japonês Daisaku Ikeda, “Uma vida saudável não significa estar livre de dificuldades, mas sim ter a força para enfrentar e superar qualquer problema”. Enfim, independentemente do que possa nos acontecer nessa jornada cheia de surpresas, desde que nascemos, temos uma energia pulsante que é maior do que imaginamos. Por tudo isso é vida que segue e vale muito a pena viver.
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