O diagnóstico de câncer muda a forma como a pessoa se relaciona com seu corpo. E esse novo jeito de se ver continua se transformando ao longo de todo o tratamento, atingindo seu ponto máximo na reconstrução mamária – seja pela retirada total ou parcial das mamas (mastectomia), que, por vezes, ainda precisa ser associada à outra cirurgia para complementar a necessidade de ter mais pele e musculatura, geralmente obtidas das costas ou da barriga, para realizar o trabalho de reparação. Diante de tudo isso, o desafio de se reconhecer no espelho é enorme, mas saber o que pode ser feito para auxiliar no tratamento bem como na recuperação dos contornos do corpo passa a ter um poder muito especial: o de melhorar a confiança e a autoestima, tão essenciais nessa jornada.

Diversos trabalhos científicos nos levam a concluir que a recuperação emocional e física da pessoa é sempre melhor quando ela faz a reconstrução mamária imediatamente após a mastectomia. Apesar disso, combinar esses procedimentos não é uma regra. “A extração do tumor, seja por meio da retirada total ou parcial das mamas e associada ou não à remoção das glândulas das axilas, tem sempre como foco principal a saúde e a vida. E quem define a dimensão da mastectomia bem como a decisão de realizar ou não a reparação estética na mesma cirurgia é o médico, junto à paciente, dependendo de como o câncer evoluiu. Ou seja, o médico vai tomar essa decisão levando em conta o tamanho do tumor, sua localização e o grau de malignidade”, esclarece a cirurgiã plástica Beatriz Lassance.

Bastidores da operação

A sala cirúrgica é orquestrada por três especialistas, cada um tomando a liderança a seu tempo. O comando inicial é do mastologia, que tem o papel de extrair o tumor e, dependendo do caso, também os gânglios linfáticos da axila, por ser o primeiro lugar de metástase. Na sequência, o patologista toma a frente da situação para analisar o tecido ao redor da área operada e confirmar se o tumor foi completamente retirado. Isso porque o paciente precisa ser considerado livre do câncer para que o cirurgião plástico entre em ação. “O tratamento multidisciplinar e complementar, em que o olhar e o cuidado de cada especialista conta e se soma, ajuda muito a chegar a um resultado melhor e reduz bastante os sofrimentos e riscos desnecessários”, afirma a doutora Beatriz Lassance.

“Por ter muitos casos de câncer de mama na família, eu vivia fazendo o autoexame, e foi num deles que descobri um nódulo no seio direito aos 30 anos de idade, quando eu morava na Austrália. Voltei para o Brasil para me tratar pelo SUS. Estava crente que, assim como minha mãe e minha tia, eu precisaria retirar apenas um quadrante da mama, mas daí veio o segundo baque: seria necessário fazer mastectomia total da mama. Relutei, chorei, mas acabei cedendo para salvar a minha vida. E como eu queria viver! Foi isso que me deu força para encarar, dois anos depois da mastectomia, três reconstruções, feitas com intervalo de seis meses entre elas. Se quatro etapas cirúrgicas valeram a pena? Muito, porque hoje me sinto completa!”

Joana Jeker dos Anjos é empreendedora social, ativista na causa do câncer, autora do livro O grande encontro e fundadora e presidente da ONG Recomeçar – Associação de Mulheres Mastectomizadas de Brasília, que atua desde 2011 na formação de políticas públicas oncológicas.

Em busca dos contornos perdidos

A liberação para fazer a restauração mamária nem sempre significa que ela será realizada numa única operação. Esse processo depende de uma série de fatores, entre eles, a quantidade de tecido mamário que precisou ser removido pelo mastologista e se a pessoa ficou com pele e musculatura suficientes para o cirurgião plástico trabalhar.

Os casos tidos como mais simples são aqueles em que o tumor é tão pequeno que para retirá-lo basta fazer um quadrante na mama, provocando um corte que só precisa ser suturado e deixa uma cicatriz pequena no local. No entanto, se a remoção de tecido mamário for maior, mas mesmo assim tiver sobrado uma boa porção de pele e musculatura no local, provavelmente o cirurgião plástico consiguirá colocar a prótese de silicone e ainda poderá escolher uma que garanta a simetria entre os dois seios – o que explica por que ele geralmente leva tantos modelos diferentes para o centro cirúrgico. Por outro lado, se o tumor for muito grande, a ponto de exigir a retirada total da mama, é quase certo que será preciso retirar um pouco de pele de outra parte do corpo, como das costas ou da barriga, para conseguir fechar o local. Conforme a situação, talvez o cirurgião consiga colocar um expansor na região – semelhante a uma bexiga vazia, este é inflado no consultório a cada sete ou quinze dias para estimular a expansão da pele até que, finalmente, possa ser substituído por uma prótese.

Expectativa na balança

É fundamental entender que a mama reconstruída não será igual à natural. “No início, ela vai ter outro formato, uma consistência diferente, não terá sensibilidade se tiver sido completamente retirada. E se for preciso trazer musculatura e pele de outra parte do corpo, muitas outras intervenções poderão ser necessárias com o objetivo de deixar o aspecto mais harmônico e natural possível e, quem sabe, conseguir colocar a prótese de silicone para deixar os seios simétricos. Por todas essas possibilidades é que dizemos que cada caso é um caso e, por vezes, de tão complexo, isso muda toda a programação do médico no meio da cirurgia”, diz a doutora Beatriz Lassance.

Outro ponto que precisa ser levado em consideração é que há uma expectativa enorme envolvida no processo de reconstrução mamária, porque a mulher, às vezes, deixa de ver o tumor para enxergar apenas a mama. Tanto é que os especialistas em cirurgia plástica sempre discutem o peso do perfil psicológico na decisão médica de fazer ou não a reparação imediatamente após a mastectomia. Como num primeiro momento a mama pode ficar desconstruída ou mesmo ser completamente retirada, há quem se deprima porque acreditava que já sairia da cirurgia com os seios perfeitos e até mais bonitos do que antes do diagnóstico do câncer. Ao avaliar cada situação em particular, o médico pode sugerir adiar ou não a cirurgia reparadora. Em contrapartida, a recomendação de restauração imediata tende a ser feita nos casos em que a mulher pode ficar muito deprimida sem mama e, por outro lado, tolerar melhor a quimioterapia pós-cirúrgica caso faça a reparação antes. De novo, cada caso é um caso, e, por isso, é preciso haver muita conversa com o seu médico e o coração aberto e focado na principal preocupação: manter-se viva e saudável. A reparação virá, mesmo que demore, e enxergá-la como secundária num momento em que a prioridade é a vida ajuda a acalmar o coração e fazer a razão funcionar a seu favor.

Novidades na lei da reconstrução mamária

Em 17 de junho de 2019 começaram a valer as duas novas regras introduzidas na lei no. 13.770, que determina que o Sistema Único de Saúde (SUS) promova a cirurgia de reconstrução mamária imediata quando a operação for possível e isenta de riscos para a paciente. Com esses adendos, agora a pessoa também tem o direito ao procedimento de tornar simétricas as duas mamas e de reconstruir as aréolas. Porém é importante saber que a expectativa pode ser diferente da realidade por uma série de gargalos já conhecidos no sistema público de saúde. Entre eles, a falta de mastologistas e de cirurgiões plásticos especializados em reconstrução de mama, a falta de próteses de silicone, o baixo número de leitos, o tamanho da fila de espera dos hospitais e a opção de muitos médicos por ocupar a sala cirúrgica para fazer duas mastectomias em vez de usar o mesmo tempo para realizar uma mastectomia seguida de reconstrução. Diante de tudo isso, para assegurar esse direito, a recomendação é exigir o agendamento da cirurgia no local em que a pessoa faz o seu tratamento oncológico. Se ele já tiver terminado, ir a uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e solicitar o encaminhamento para uma unidade especializada em cirurgia de reconstrução mamária. Contudo, se a paciente for fazer isso pelo plano de saúde, é bom pedir para o mastologista orientá-la a respeito de como contatar o cirurgião plástico. Caso já tenha feito a mastectomia, deve-se contatar um cirurgião plástico em sua rede credenciada.